Os comentários/questões que recebi em relação ao poema (O que é - Sympathia), livro (As Primaveras) e autor (Casimiro de Abreu) mencionados no post Poema, "O que é - Sympathia", Casimiro de Abreu levaram-me a acelerar a escrita deste post. Pois, parece-me que a melhor maneira de responder a essas questões é mostra-vos o prólogo de F. D. Ramalho Ortigão ao livro. O autor deste prólogo, Francisco Duarte Ramalho Ortigão, foi irmão do (mais conhecido) José Duarte Ramalho Ortigão. Eu não consigo encontrar a data em que este prólogo foi escrito, mas deduzo que terá sido no período entre as mortes de Casimiro de Abreu e de F. D. Ramalho Ortigão (entre 1860 e 1920).
Como sempre, deixo os meus comentários para o fim, para que voçês possam ler e criar a vossa opinião primeiro. Mas se eu me dei ao trabalho de escrever isto tudo para o computador (não existe na internet!) é porque acho que é um texto verdadeiramente interessante.
Assim sendo, aqui vos deixo um excerto do prólogo de F. D. Ramalho Ortigão ao livro As Primaveras de Casimiro de Abreu (5ª edição, 1925; LELO & IRMÃO, Ltd. - Editores):
Casimiro de AbreuPorque disparam em occasião de riso tantas nenias engenhadas para arrancar lagrimas dos olhos e desentranhar suspiros do peito?Porque sahe pueril e ôca a ode que tenta decifrar essas tristezas suavissimas que a perfumada aragem da saudade traz, em tropel, dos jardins do passado para adejarem em confusa nuvem sobre o nosso espirito, assim como no cabeço de solitario penhasco se esvoaça á hora do sol poente a revoada de aves marinhas advindas no equinocio de região longinqua?Porque redunda em striduo fragor de palavras o hymno patriotico que dá no ouvido a toada e não verte dentro o succo do enthusiasmo, o qual, ao primeiro rebate da musa epica, devia logo pollular nas veias, retremer nos musculos, trovejar no cerebro?Porque descahe em vulgaridade chocha, que faz sorrir ou descrêr a mulher, a palavra do amor, que lhe devia cahir na alma, como em labio febricitante a fresquissima gotta do orvalho matutino, que refrigera e delicía, sem matar a sêde, sem estancar a ancia, sem apagar a febre?E' porque nem é de afflicto essa tristeza, nem de de melancholico essa mágoa, nem de apixonado essa paixão, nem de amante esse amor.Para ser poeta é preciso ter fé em alguma coisa, disse Garrett, e então consignou em breve termo o aphorismo porque deviam principar todas as artes poeticas.Antes de lêr Aristoteles, Horacio, Vida e Despreaux, antes de perguntar á intelligencia se ella póde com o alimento que ha de enrijal-a, antes de a ungir para a lucta com os ungentos da immortalidade, cumpre interrogar o coração, porque é lá que deve existir o principal elemento que constitui os poetas. Revela acreditar seja em que fôr: no heroismo como Homero, na patria como Camões, na gloria como Tasso, na religião como Milton, na duvida como Biron, na liberdade como Hugo, na familia como Lamartine; na vida ou na eternidade: Horacio ou Dante, a realidade ou a visão. Mas cumpre acreditar de dentro e do intimo com uma convicção entranhada e profunda, d'essas que instam, pungem, abalam, decidem, e quando chegam a revelar-se não se traduzem pela palavra, antes pelo grito. Não é placidez oratoria compassando a dicção, aparando o metro, sopesando a figura, joeirando o vocabulo; é o impeto, é o arrobo, é a audacia, palpitando no labio, fuzilando nos olhos, latejando nas fontes. A creacção intellectual póde em tal conjunctura não ser rigorosamente metrica, mas poetica ha de ser por força. E antes isso: antes a poesia sem o verso do que o verso sem a poesia; antes verdadeiro poeta pelo coração do que eximio versejador pela cabeça.Casimiro de Abreu, auctor d'este bello livro das Primaveras, que eu acabo de fechar, suscitando-me as refexões que deixo escriptas, é d'ellas o melhor exemplo. Desconhece os segredos da linguagem com que se confeita a pobreza do espirito, não estudou em alheios moldes a forma em que tem que vasar-se a inspiração, não aprendeu a mechanica da palavra nem o contraponto da versificação. Não é um genio desenvolvido nem um grande litterato; é uma grande alma e um grande infeliz. Não verseja, poeta; não canta, suspira, lamenta-se, chora. Diz-nos singelamente o que sente, dá-nos em cada verso um sorriso ou uma lagrima, em cada strophe um pedaço da sua alma, e sem o querer, sem o pensar, talvez, offerece-nos no seu livro das Primaveras, mera colecção de poesias fugitivas, o completo romance d'um coração, um poema inteiro, cujo heroe é o auctor.O argumento d'esse livro, em um só canto, conciso e breve como a dôr intensa, é o summario da biographia exacta do poeta....Se Casimiro d'Abreu alliasse uma educação litteraria á pura sensibilidade da sua alma, á elevação do seu espirito, á clareza do seu criterio, e ao pendor da sua indole profundamente melancholica e scismadora, abalanço-me a dizer que o seu nome seria hoje o do mais perfeito poeta que tem botado a moderna geração litteraria em Portugal e no Brazil.Casimiro d'Abreu tem vinte annos! e o seu livro exhala de todas as folhas o perfume suavissimo d'esse madrugar da existencia tão esplendido sempre de luz e de harmonia, d'enthusiasmo e d'amor...Oh! dá que eu saude a tua memoria, meu divino rapaz, que tiveste a coragem de o ser, e de tal te prezares n'este seculo em que se finge a duvida, o desalento, e a descrença aos dezoito annos! n'este seculo em que não ha convivas ao alegre banquete da mocidade, porque os imberbes tomam o seu café e palitam os dentes em jejum! n'este seculo em que o espirito impotente tomou por moda descórar os beiços e pintar pés de gallinha ao canto dos olhos!...Bem hajas tu, que foste verdadeiramente poeta no meio dos sensaborôes, porque verdadeiramente foste sincero entre os presumidos!...Pouco tempo depois Casimiro d'Abreu exhalava o seu ultimo suspiro, contando 22 annos!O livro que deixou ahi esta. E' o poema duma existencia, baseado nos mais singelos elementos de poesia: viver soffrendo, amar esperando, e morrer sorrindo.F. D. Ramalho Ortigão
Eu acho este texto extraordinário! Nele se encontra uma das melhores, senão mesmo a melhor das, definições/explicações do que é a poesia e do que é ser poeta, que eu conheço. Aliás, lido com um olhar mais aberto este texto retrata uma verdadeira filosofia de vida.
Eu evitei destacar algumas partes do texto, para não influenciar a vossa leitura - e também porque acabaria por destacar (quase) todo o texto! Mas não resisto a chamar a atenção para algumas expressões/ideias deliciosas - para ler com o tal olhar mais aberto, pois não se referem apenas à poesia, mas à vida no seu todo!:
- Para ser poeta é preciso ter fé em alguma coisa, disse Garrett, ...
Almeida Garrett em Viagens na minha terra, Capítulo VI: É preciso crer em alguma coisa para ser grande - não só poeta - grande seja no que for.
- Antes de ... perguntar á intelligencia se ella póde com o alimento que ha de enrijal-a ..., cumpre interrogar o coração, porque é lá que deve existir o principal elemento que constitui os poetas.
- Revela acreditar seja em que fôr ... Mas cumpre acreditar de dentro e do intimo com uma convicção entranhada e profunda, d'essas que instam, pungem, abalam, decidem, e quando chegam a revelar-se não se traduzem pela palavra, antes pelo grito.
- ... antes a poesia sem o verso do que o verso sem a poesia; antes verdadeiro poeta pelo coração do que eximio versejador pela cabeça.
- Não é um genio desenvolvido nem um grande litterato; é uma grande alma e um grande infeliz. Não verseja, poeta; não canta, suspira, lamenta-se, chora.
Notem que aqui (Não serseja, poeta) a palavra poeta está a ser usada como a 3ª pess. sing. pres. ind. do verbo poetar.
- Bem hajas tu, que foste verdadeiramente poeta no meio dos sensaborôes, porque verdadeiramente foste sincero entre os presumidos!
- O livro que deixou ahi esta. E' o poema duma existencia, baseado nos mais singelos elementos de poesia: viver soffrendo, amar esperando, e morrer sorrindo.
Para terminar, devo confessar que (pelas razões acima mencionadas) este prólogo de F. D. Ramalho Ortigão foi a parte que mais gostei do livro As Primaveras de Casimiro de Abreu. Nele estão alguns dos maiores elogios que um poeta pode receber e Casimiro de Abreu será eventualmente merecedor deles. Mas convém recordar que Casimiro de Abreu, como muitos outros (ultra-)românticos, morreu novo, de tuberculose. Hoje já há tratamento para a tuberculose, mas mesmo assim, aqui fica um conselho para os (ultra-)românticos:
- Romantismo SIM, MAS temperado com Realismo (ou vice-versa)!
- (Ultra-)Romantismo Irreal e Enclausurado NÃO!
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