sábado, 11 de julho de 2009

"Casimiro de Abreu", prólogo de F. D. Ramalho Ortigão ao livro "As Primaveras" de Casimiro de Abreu


Os comentários/questões que recebi em relação ao poema (O que é - Sympathia), livro (As Primaveras) e autor (Casimiro de Abreu) mencionados no post Poema, "O que é - Sympathia", Casimiro de Abreu levaram-me a acelerar a escrita deste post. Pois, parece-me que a melhor maneira de responder a essas questões é mostra-vos o prólogo de F. D. Ramalho Ortigão ao livro. O autor deste prólogo, Francisco Duarte Ramalho Ortigão, foi irmão do (mais conhecido) José Duarte Ramalho Ortigão. Eu não consigo encontrar a data em que este prólogo foi escrito, mas deduzo que terá sido no período entre as mortes de Casimiro de Abreu e de F. D. Ramalho Ortigão (entre 1860 e 1920).
Como sempre, deixo os meus comentários para o fim, para que voçês possam ler e criar a vossa opinião primeiro. Mas se eu me dei ao trabalho de escrever isto tudo para o computador (não existe na internet!) é porque acho que é um texto verdadeiramente interessante.
Assim sendo, aqui vos deixo um excerto do prólogo de F. D. Ramalho Ortigão ao livro As Primaveras de Casimiro de Abreu (5ª edição, 1925; LELO & IRMÃO, Ltd. - Editores):

Casimiro de Abreu
Porque disparam em occasião de riso tantas nenias engenhadas para arrancar lagrimas dos olhos e desentranhar suspiros do peito?
Porque sahe pueril e ôca a ode que tenta decifrar essas tristezas suavissimas que a perfumada aragem da saudade traz, em tropel, dos jardins do passado para adejarem em confusa nuvem sobre o nosso espirito, assim como no cabeço de solitario penhasco se esvoaça á hora do sol poente a revoada de aves marinhas advindas no equinocio de região longinqua?
Porque redunda em striduo fragor de palavras o hymno patriotico que dá no ouvido a toada e não verte dentro o succo do enthusiasmo, o qual, ao primeiro rebate da musa epica, devia logo pollular nas veias, retremer nos musculos, trovejar no cerebro?
Porque descahe em vulgaridade chocha, que faz sorrir ou descrêr a mulher, a palavra do amor, que lhe devia cahir na alma, como em labio febricitante a fresquissima gotta do orvalho matutino, que refrigera e delicía, sem matar a sêde, sem estancar a ancia, sem apagar a febre?
E' porque nem é de afflicto essa tristeza, nem de de melancholico essa mágoa, nem de apixonado essa paixão, nem de amante esse amor.
Para ser poeta é preciso ter fé em alguma coisa, disse Garrett, e então consignou em breve termo o aphorismo porque deviam principar todas as artes poeticas.
Antes de lêr Aristoteles, Horacio, Vida e Despreaux, antes de perguntar á intelligencia se ella póde com o alimento que ha de enrijal-a, antes de a ungir para a lucta com os ungentos da immortalidade, cumpre interrogar o coração, porque é lá que deve existir o principal elemento que constitui os poetas. Revela acreditar seja em que fôr: no heroismo como Homero, na patria como Camões, na gloria como Tasso, na religião como Milton, na duvida como Biron, na liberdade como Hugo, na familia como Lamartine; na vida ou na eternidade: Horacio ou Dante, a realidade ou a visão. Mas cumpre acreditar de dentro e do intimo com uma convicção entranhada e profunda, d'essas que instam, pungem, abalam, decidem, e quando chegam a revelar-se não se traduzem pela palavra, antes pelo grito. Não é placidez oratoria compassando a dicção, aparando o metro, sopesando a figura, joeirando o vocabulo; é o impeto, é o arrobo, é a audacia, palpitando no labio, fuzilando nos olhos, latejando nas fontes. A creacção intellectual póde em tal conjunctura não ser rigorosamente metrica, mas poetica ha de ser por força. E antes isso: antes a poesia sem o verso do que o verso sem a poesia; antes verdadeiro poeta pelo coração do que eximio versejador pela cabeça.
Casimiro de Abreu, auctor d'este bello livro das Primaveras, que eu acabo de fechar, suscitando-me as refexões que deixo escriptas, é d'ellas o melhor exemplo. Desconhece os segredos da linguagem com que se confeita a pobreza do espirito, não estudou em alheios moldes a forma em que tem que vasar-se a inspiração, não aprendeu a mechanica da palavra nem o contraponto da versificação. Não é um genio desenvolvido nem um grande litterato; é uma grande alma e um grande infeliz. Não verseja, poeta; não canta, suspira, lamenta-se, chora. Diz-nos singelamente o que sente, dá-nos em cada verso um sorriso ou uma lagrima, em cada strophe um pedaço da sua alma, e sem o querer, sem o pensar, talvez, offerece-nos no seu livro das Primaveras, mera colecção de poesias fugitivas, o completo romance d'um coração, um poema inteiro, cujo heroe é o auctor.
O argumento d'esse livro, em um só canto, conciso e breve como a dôr intensa, é o summario da biographia exacta do poeta.
...
Se Casimiro d'Abreu alliasse uma educação litteraria á pura sensibilidade da sua alma, á elevação do seu espirito, á clareza do seu criterio, e ao pendor da sua indole profundamente melancholica e scismadora, abalanço-me a dizer que o seu nome seria hoje o do mais perfeito poeta que tem botado a moderna geração litteraria em Portugal e no Brazil.
Casimiro d'Abreu tem vinte annos! e o seu livro exhala de todas as folhas o perfume suavissimo d'esse madrugar da existencia tão esplendido sempre de luz e de harmonia, d'enthusiasmo e d'amor...
Oh! dá que eu saude a tua memoria, meu divino rapaz, que tiveste a coragem de o ser, e de tal te prezares n'este seculo em que se finge a duvida, o desalento, e a descrença aos dezoito annos! n'este seculo em que não ha convivas ao alegre banquete da mocidade, porque os imberbes tomam o seu café e palitam os dentes em jejum! n'este seculo em que o espirito impotente tomou por moda descórar os beiços e pintar pés de gallinha ao canto dos olhos!...
Bem hajas tu, que foste verdadeiramente poeta no meio dos sensaborôes, porque verdadeiramente foste sincero entre os presumidos!
...
Pouco tempo depois Casimiro d'Abreu exhalava o seu ultimo suspiro, contando 22 annos!
O livro que deixou ahi esta. E' o poema duma existencia, baseado nos mais singelos elementos de poesia: viver soffrendo, amar esperando, e morrer sorrindo.
F. D. Ramalho Ortigão

Eu acho este texto extraordinário! Nele se encontra uma das melhores, senão mesmo a melhor das, definições/explicações do que é a poesia e do que é ser poeta, que eu conheço. Aliás, lido com um olhar mais aberto este texto retrata uma verdadeira filosofia de vida.
Eu evitei destacar algumas partes do texto, para não influenciar a vossa leitura - e também porque acabaria por destacar (quase) todo o texto! Mas não resisto a chamar a atenção para algumas expressões/ideias deliciosas - para ler com o tal olhar mais aberto, pois não se referem apenas à poesia, mas à vida no seu todo!:

  • Para ser poeta é preciso ter fé em alguma coisa, disse Garrett, ...
Almeida Garrett em Viagens na minha terra, Capítulo VI: É preciso crer em alguma coisa para ser grande - não só poeta - grande seja no que for.

  • Antes de ... perguntar á intelligencia se ella póde com o alimento que ha de enrijal-a ..., cumpre interrogar o coração, porque é lá que deve existir o principal elemento que constitui os poetas.
  • Revela acreditar seja em que fôr ... Mas cumpre acreditar de dentro e do intimo com uma convicção entranhada e profunda, d'essas que instam, pungem, abalam, decidem, e quando chegam a revelar-se não se traduzem pela palavra, antes pelo grito.
  • ... antes a poesia sem o verso do que o verso sem a poesia; antes verdadeiro poeta pelo coração do que eximio versejador pela cabeça.
  • Não é um genio desenvolvido nem um grande litterato; é uma grande alma e um grande infeliz. Não verseja, poeta; não canta, suspira, lamenta-se, chora.
Notem que aqui (Não serseja, poeta) a palavra poeta está a ser usada como a 3ª pess. sing. pres. ind. do verbo poetar.

  • Bem hajas tu, que foste verdadeiramente poeta no meio dos sensaborôes, porque verdadeiramente foste sincero entre os presumidos!
  • O livro que deixou ahi esta. E' o poema duma existencia, baseado nos mais singelos elementos de poesia: viver soffrendo, amar esperando, e morrer sorrindo.

Para terminar, devo confessar que (pelas razões acima mencionadas) este prólogo de F. D. Ramalho Ortigão foi a parte que mais gostei do livro As Primaveras de Casimiro de Abreu. Nele estão alguns dos maiores elogios que um poeta pode receber e Casimiro de Abreu será eventualmente merecedor deles. Mas convém recordar que Casimiro de Abreu, como muitos outros (ultra-)românticos, morreu novo, de tuberculose. Hoje já há tratamento para a tuberculose, mas mesmo assim, aqui fica um conselho para os (ultra-)românticos:

  • Romantismo SIM, MAS temperado com Realismo (ou vice-versa)!
  • (Ultra-)Romantismo Irreal e Enclausurado NÃO!

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